Existem livros mágicos. Quem lê um deles vai para sempre acreditar no poder mágico dos livros, do livro. "Harry Potter e a Pedra Filosofal" é um dos mais impressionantes. A escala e a velocidade de seu sucesso sugerem alquimias secretas. O jovem bruxo não se materializou por encanto. Mas gerou um furacão inesperado. Fez do segmento "livro juvenil" o mais quente da indústria editorial. Com consequências no cinema, no merchandising, nos videogames e na TV.



Mas que é um livro juvenil? Até recentemente, a indústria do livro dividia a literatura em dois grupos principais, "adulta" e "infantil" (ou "infanto-juvenil", outro nome, mesmo significado vago). Neste último segmento, agrupava álbuns coloridos para nenês e tijolos de 700 páginas.

Para fazer uma idéia: em dezembro de 2001, a revista "Publisher's Weekly", bíblia do mercado editorial, publicou a lista dos 276 livros infantis que venderam mais de 1 milhão de cópias nos EUA. O mais vendido é "Charlotte's Web", de E.B. White, criadora do ratinho Stuart Little. Em seguida, vem "Outsiders", escrito aos 18 anos por S.E. Hinton e filmado por Francis Ford Coppola. Nada a ver um com o outro.

Cabe de tudo na lista. Das Tartarugas Ninja a gente como Dr. Seuss ("O Grinch"), R.L. Stine (da coleção de terror juvenil "Goosebumps") e Roald Dahl ("A Incrível Fábrica de Chocolate").

No Brasil também se mistura banana com laranja. Nossas listas atuais de best-sellers infanto-juvenis revelam "1984" e "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, e "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, ao lado de Cinderela e Cebolinha.

O escritor de ficção-científica Thomas M. Disch diz que os bons autores de livros para adolescentes devem manter a clareza e a inocência de garotos sabidos como Peter Pan. Chama neotenia. É como os biólogos batizaram a retenção de características imaturas ou larvais no estágio adulto. Para Disch, "os jovens não são seres inferiores, nem miniadultos. São apenas diferentes dos adultos". Têm outras necessidades, outros interesses, outro humor, menos respeito pelo passado, muita curiosidade sobre o futuro, pouca paciência com regras que não criaram, imaginação fértil e muita pressa.

O homem é uma espécie que conta histórias, conta o biólogo Steven Pinker. Para ele, a criança que se encanta com um conto de fadas está fazendo uso de uma herança genética da humanidade. Pinker defende que essa capacidade é uma vantagem evolutiva. Em todos os cantos do planeta, as linguagens são divididas em objetos e ações: substantivos e verbos. Elas nos permitem transmitir informações sobre o que vai acontecer depois, organizando fatos numa sequência temporal.

Não há maneira melhor de transmitir informação densa do que por meio de uma história. Por isso elas têm poder. E os livros incorporam esse poder. Cada livro lido nos muda. Passa a fazer parte da nossa história pessoal. A sequência das obras lidas por cada um é única, pessoal e intransferível.

A adolescência é nosso período de liberdade máxima como leitores. Já temos repertório e ambição suficientes para encarar qualquer "lista telefônica". E não temos, ainda, as obrigações sociais que fazem de boa parte da leitura madura um tedioso desfile de manuais (como dar um jeito na economia, na carreira, escolher o vinho, diminuir a barriga etc.), castigo que já começa com as leituras obrigatórias para o vestibular (a maldição de "Iracema").

O psicólogo Jean Piaget defendia que, nessa fase, "o ser humano está tentando dominar os elementos que lhe faltam para a razão adulta. Precisa aprender a lidar com idéias abstratas e, por isso, precisa ler livros que lidem com abstrações". Deve, portanto, ler histórias fantásticas e selvagens. Quando você não sabe exatamente do que é capaz, precisa de horizontes distantes e idéias desafiadoras. Exige viver aventuras perigosas que testem seus limites.


É por essa razão que todo leitor, nessa fase, adora se apossar de livros escritos para adultos. Pode ser uma velharia desbeiçada e empoeirada da estante, herança do irmão mais velho ou do avô.

Hoje, no Brasil, é inevitável que os jovens acabem lendo Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca. Ou algum desses livros históricos-fantásticos, estrelados por Cleópatra, Alexandre, Júlio César, Jesus Cristo, faraós, Rei Arthur, Bórgias, Medicis. Os "technothrillers" de Tom Clancy, os dramas legais de John Grisham, o horror suburbano de Stephen King, os melodramas góticos de Anne Rice.

Qualquer leitor esperto de 13 anos digere numa boa um best-seller típico, que muitas vezes é um livro juvenil para adultos, disfarçado. E quem já passou dos 30 e não leu Sidney Sheldon, Danielle Steel, Irving Wallace ou Morris West no ginásio que atire a primeira pedra.

A adolescência também é o momento em que alguns de nós se apaixonam perdidamente por gêneros —principalmente, o policial ou a ficção científica. Com duas vantagens. Uma, você sempre tem uma noção do que te espera. Outra, você tem a história inteira do gênero à sua disposição. Quem se apaixona por Agatha Christie vai descobrir Georges Simenon e Raymond Chandler. Quem fica louco por Isaac Asimov acaba encontrando H.G. Wells e William Gibson. Tipo da paixão que bate e fica.

Nenhum desses autores buscava o leitor juvenil. Nem os grandes autores de aventura, como Robert Louis Stevenson e Jack London. Zorro, Drácula, Sherlock Holmes, Conan e o Capitão Nemo foram criados para a diversão de pais, não de filhos. Deram origem e foram parcialmente substituídos pelas histórias em quadrinhos e, mais recentemente, pelos jogos eletrônicos. Essas obras continuam clássicas e são lidas até hoje.


Os romances escritos especificamente para adolescentes são diferentes e muito fáceis de reconhecer. São estrelados por garotos e meninas da mesma faixa etária do leitor, dos 10 aos 15 anos, saindo de seu cotidiano e adentrando um universo desconhecido. Enfrentam bruxas, desvendam conspirações, escondem-se em foguetes, lideram piratas. Muitas vezes, também sofrem e sangram.

Alguns apresentam universos paralelos para onde o leitor adoraria se mudar, ou de onde ele fugiria voando. Os melhores apresentam as virtudes e desvantagens de cada lado do espelho, com os protagonistas simultaneamente abraçando e rejeitando os dois campos opostos. Exatamente como o adolescente, que mantém um pé na infância enquanto dá um passo maior que as pernas em direção à maturidade. O maior clássico juvenil desse tipo é "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger —melhor se lido até os 15 anos e relido periodicamente depois disso.

A inglesa Joanne Kathleen Rowling, criadora de Harry Potter, escreve livros assumidamente juvenis e é o novo paradigma do segmento. Soube combinar muito bem duas vertentes tradicionais da literatura de seu país: os livros que se passam em internatos e a paixão pelo ocultismo.

Aventuras divertidas em colégios internos rígidos são populares na Inglaterra há muito tempo. É uma realidade muito distante da nossa e nunca pegou por aqui. A principal exceção é a série de Jennings (no Brasil, Johnny, publicado pela Ediouro). São 25 livros escritos entre 1950 e 1994 por Anthony Buckeridge, que estabeleceram as convenções do gênero.

O crítico inglês Francis Spufford tem uma boa explicação para o sucesso desses livros. As escolas internas são "cidades de crianças". Não há pais por perto. São um espaço de liberdade, onde as regras —justamente por serem externas e impostas— podem ser quebradas ou enfrentadas, sem culpa.

O que importa são as regras de convivência estabelecidas pelas próprias crianças —como aprendemos a conviver com nossos semelhantes e diferentes. Inclusive o garoto riquinho e metido da turma inimiga, o velho mestre misterioso, a professora insuportável e a garota tapada. É por isso que Harry e seus leitores adoram o colégio Hogwarts.

Esses livros de internato fazem parte do que Spufford chama de "estágio da cidade", quando o jovem leitor passa a se interessar por livros que exploram a convivência realista entre as pessoas. Seja numa fazenda, numa ilha secreta, num vilarejo do velho oeste ou num internato. Na Inglaterra, essas obras exploram também a relação entre as classes sociais.

O ambiente escolar é a única grande diferença entre Harry e o personagem Tim Hunter, criado por Neil Gaiman, em 1990, na minissérie em quadrinhos "Os Livros da Magia".

Tim é um garoto órfão, míope, tímido e moreno, de 13 anos. Um dia é levado para conhecer o universo da magia. Se cumprir seu treinamento, poderá se tornar o maior mago do universo. Ganha um mascote/totem para sua jornada: uma coruja, símbolo da sabedoria secreta. Bem parecido com Harry, que só estreou sete anos depois.

Gaiman garante que Rowling não plagiou sua criação, mas se inspirou na mesma fonte que ele: a tradição mágica britânica. Há desconfianças de que que houve acordo entre os autores.

Realmente as artes na Inglaterra têm ligação tradicional com o oculto. E não só em tempos antigos. A ilha deu ao mundo o mais famoso mago do Século 20, Aleister Crowley. A partir dos anos 60, presenciou a renovação do misticismo e o aparecimento de uma nova geração de criadores fortemente envolvidos com magia. Entre os mais conhecidos estão os escritores de livros e quadrinhos Alan Moore ("A Voz de Fogo" e "Do Inferno") e Grant Morrison, cuja cultuada série "Os Invisíveis" é a matriz de "Matrix", o filme.


No Reino Unido, até as obras de respeitáveis acadêmicos cristãos, como o inglês J.R.R. Tolkien e o irlandês C.S. Lewis, têm componentes místicos muito fortes. Ambos andam mais populares do que nunca e têm sido muito lidos por adolescentes à espera do quinto episódio de "Harry Potter".

Amigos e contemporâneos, os dois faziam parte do grupo de intelectuais conhecido como "os cristãos de Oxford", criado nessa universidade na década de 30. Colocaram todo seu fervor religioso nas obras que lhes deram fama, "O Senhor dos Anéis" e "As Crônicas de Narnia".

Tolkien, estudioso da literatura saxônica, pretendia, com a "saga do anel", criar uma mitologia artificial, mas crível, e tipicamente inglesa, à altura do que imaginava que o país merecesse. Foi mais bem sucedido do que poderia imaginar. Sua influência se espalhou pela cultura mundial e está nos lugares mais inesperados —até no filme "Xuxa e os Duendes".

Tolkien assumia que a Terra Média era um mundo pré-cristão, cuja história se passava antes do pecado original. Não se incomodava com os paralelos entre o pão dos Elfos e a eucaristia, ou entre Galadriel e a Virgem Maria. Só admitiu que "Gandalf é um anjo".

Lewis foi além. As sete "Crônicas de Narnia" são o mais explícito proselitismo cristão, com meninos e meninas explorando um universo paralelo muito imaginativo, onde reina o leão Aslan, o Cristo dessa outra realidade. O primeiro livro, "O Leão, a Bruxa e o Guarda-Roupa", voltou às listas de mais vendidos pelo mundo afora e é muito recomendado por igrejas cristãs da Inglaterra e dos Estados Unidos. É um dos autores prediletos de J.K. Rowling.

Outra grande influência na criação de Harry Potter é Diana Wynne Jones, a grande dama da fantasia inglesa. Escrevendo para jovens desde 1973, já tem vários clássicos no currículo, inclusive os quatro volumes das "Crônicas de Chrestomanci", iniciadas em 1977 e agora popularizadas fora da Inglaterra. Seu personagem principal, o garoto Christopher Chant, é um mago que guarda os portais entre os mundos.

Também anterior à "explosão Potter" é Terry Pratchett , o autor mais vendido do Reino Unido nos anos 90, em qualquer gênero. Somente agora está ficando popular em outras línguas. A série "Discworld", iniciada por "A Cor da Magia", une fantasia alucinada com o mais idiossincrático humor inglês.

Os principais companheiros contemporâneos de Harry Potter nas listas de best-sellers são a família Baudelaire, o ladrãozinho Artemis Fowl e a poderosa Lyra da Língua Mágica —todos em breve num cinema perto de você.

Os nove livros de "Desventuras em Série", escritas por Daniel Handler sob o pseudônimo de Lemony Snicket, merecem ser lidos por todos os fãs da "Família Addams". Contam a desgraçada vida dos três órfãos Baudelaire, às voltas com criminosos encardidos e roupas pinicantes.

"Artemis Fowl" é outro astro. O maquiavélico menino prodígio do crime usa supercomputadores para engambelar fadas e enfrentar exércitos mitológicos. O irlandês Eoin Colfer dispara frases secas de tira americano como "a voz que emanava do alto-falante era tão séria quanto um inverno nuclear".

Philip Pulmann ocupa um lugar especial. Ganhou prêmios literários importantes e tem admiradores e detratores igualmente apaixonados. A razão é que sua trilogia "Fronteiras do Universo" é herética, um libelo anti-religioso e anticristão.

Inspirada no "Paraíso Perdido", de John Milton, a série relata a batalha final entre a Autoridade, as forças do controle e do ritual, que aprisionam a humanidade há milênios, e a República do Paraíso, que vem lutando pela liberdade desde que os anjos se rebelaram contra Deus. Pulmann é um paradoxo: coloca sua imaginação incomparável a serviço de um elogio do materialismo. Diz que "depois de comida, teto e companhia, não há nada que o homem deseje tanto quanto histórias".


André Forastieri, 37, é editor e co-fundador da Conrad Editora, especializada no leitor jovem. Agradece a Valderez, sua mãe, por tê-lo ensinado a ler, e a João Carlos, seu pai, pela coleção completa do Sítio do Picapau Amarelo, que ganhou em 1972.